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Coisa de boneca.

Ela sabia que em algum momento todos iriam embora. Primeiro tinham tirado ela de uma loja sem clientes no meio do Centro, e então ela foi da Mãe.  A Mãe antes de se chamar Mãe se chamava Mariana. E Mariana brincava com ela pelas manhãs e de tarde quando tinha que ficar no trabalho da sua mãe a levava em seu colo. Então Mariana foi crescendo, e conheceu o Pai, que na época se chamava Caio. Ela não gostou de Caio logo de primeira vista. Quando Mariana conheceu Caio ela já estava na estante sobre a cama, e ouvia eles fazendo coisas. Essa época foi bem triste e vazia, e Mariana não tocava nela. Até que um dia ela apareceu com Juliana, e na época Juliana era do seu tamanho. Foi colocada ao lado de Ju que a abraçou instantaneamente. Nesse tempo Caio já tinha sumido, ele trocou de nome para Pai depois quando Mariana contava histórias  sobre ele para a filha. Logo Juliana também passou a carregar ela pelos cantos, e gostava especialmente da TV. No dia estavam passando várias matérias sobre o mesmo assunto em todos os canais, até os infantis. Tinha alguma coisa na água que estava deixando as pessoas doentes. Naquele dia Mariana chegou diferente em casa. Ela estava chorando, que nem quando o Pai foi embora. A boneca conseguia ver que ela estava pálida, e Juliana também. Então Mariana levou as duas para um lugar grande cheio de homens vestidos que nem os soldadinhos de brinquedo que ela tinha visto uma vez. Ela se lembrava de como Juliana a segurava apertado. Todos os moços estavam com rostos preocupados no dia. E eles não estavam deixando Mariana entrar, mesmo com ela chorando muito. A Mãe disse que estava tudo bem, que era para Juliana ir com eles, que ia ficar bem. Tinha dito que a boneca estava ali para que a filha se lembrasse dela. Ela e Ju viram os soldadinhos grandes levarem a Mãe para fora. E tinha toda uma vida dentro do lugar. Fora os soldadinhos tinham várias pessoas, e ela achava que Ju tinha medo delas, porque estava bem apertado o abraço. Os anos foram se passando, e tinha cada vez menos pessoas no lugar. Era a água. Depois de um tempo Juliana passou a deixar ela em outra estante, mas todo dia passava um tempo encarando a boneca. Às vezes ela chorava enquanto a abraçava em segredo. Os soldadinhos foram diminuindo, as pessoas também. Naquele verão a boneca conseguiu contar apenas dez pela janela. Então teve o dia em que Juliana entrou no quarto parecida com a Mãe. Pálida, chorando, com os olhos avermelhados. Ela abraçou a boneca e caiu no chão abraçada com ela. Deixou ela ali e saiu do quarto, nunca mais voltou. Ela nunca viu mais ninguém passar pela janela, nem ali do chão. Mas ela sabia. Em algum momento todos iriam embora.



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Botão vermelho

 Quero contar aqui um breve conflito que tenho semanalmente. Faz um tempo que comecei a frequentar a academia, o que sério, já é uma vitória eu estar lá. Achei que ia ser só uma parada relaxante e para extravasar o estresse. Dito isso, eu não contava com o maldito botão vermelho. Ok, eu tenho que explicar isso direito para vocês entenderem.  Estava eu no meu primeiro dia de academia e a treinadora falou para eu ir para a esteira. Ok, pensei, eu vou para a esteira. Subi no aparato e comecei a me sentir o Flash viajando no tempo, até ai tava tranquilo. Quando você passa alguns minutos em algum lugar começa a observar ele. Olhei para a esteira. Tinha um medidor de quilômetros, um de calorias, botões, e então, o maldito botão vermelho. Sabe quando você bate o olho em uma coisa e sabe que aquilo vai te atormentar? Poisé. Vou tentar descrever para vocês esse botão.   Bom, que ele é vermelho vocês já sabem. Ele fica localizado na parte inferior direita do painel da esteira. É gordo

Transborda

 Transbordar envolve cair.  Transbordar significa sair fora, ou sair fora das bordas. Ter em excesso, estar repleto. Transbordar é estar tão cheio que se derrama. É uma coisa linda, mas transbordar envolve cair. Esse texto é só para você se lembrar disso. Quando se transborda a água que ultrapassa o topo do copo derrama pelas beiradas e escorre em gotas até a mesa. Transbordar pode ser o famoso fogo de palha, como diria o Pedro. Aquilo que acende rápido e rápido se vai. Mas transbordar é gostoso. Transbordar é intensidade, uma intensidade e uma entrega tão poderosa que se ultrapassa os limites. Então, meu bem, transborda. Mas transborda consciente. Se lembra que coisas podem ser incrivelmente lindas e em um segundo serem, apenas, legais, sabe? Ou ruins, elas podem ficar ruins também. Se você transbordar vai se encher de si. Vai ter tanto de você ali que só sorrisos vão caber. E pode ser ruim também, você pode transbordar tristeza. Encher o copo de lágrimas. É só isso

Minha irmã é que nem tatuagem.

 É estranho ser um irmão menor. Nos filmes a gente costuma ver o lado do irmão maior e sobre como o irmão menor é um porre, ou inexperiente. Na minha sala da escola todo mundo era o irmão maior, mas eu não, sempre fui o caçula. E ser o caçula é uma experiência no minimo interessante.   Minha irmã é o meu oposto; cinco anos mais velha, meu nome veio do dela, Victória. Se eu fosse um giz de cera ela seria uma caneta bic. Eu estudava, ela ia pra balada; ela era sociável e eu tinha três amigos. Minha irmã me viu crescer, e deve ter sido um processo engraçado ou curioso. Eu era uma criança calada, que internalizava as coisas. Quando criança nós nos mudamos para um bairro longe da cidade e tudo era complicado.   A nossa mãe era professora e fazia faculdade de psicologia, passava o dia fora, meus pais eram separados e nós dois costumávamos viver sozinhos. Dividíamos as tarefas da casa, e minha irmã tinhas as rédeas. Passava o rodo, varria, e fazia todos os trabalhos importantes que