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Crescer me doeu


 Crescer doeu um pouco. Quando criança tinha preocupações realmente importantes e bem mais sérias que as de alguém mais velho. Sério, eles queriam saber de contas, eu queria saber qual era a possibilidade de vida inteligente fora da terra. Mas pelo que parece eu era uma criança fora do comum. Chegava na escola sem saber que era dia de prova, e sem ter estudado, descobrindo que tinha um teste no dia conseguia sair com as melhores notas da sala. Era tudo bem fácil, e era tedioso ser bom naquilo. Ir na escola para mim era bem mecânico. 

 - Seu filho aparenta ter um desempenho fora do normal - disse a professora para os meus pais. Pelo que me lembro dessa professora ela era verdadeiramente não humana. Na minha cabeça ela era verde, alta e curvada, com uma pele rugosa - Achamos que poderiam considerar saltar ele uma série. 

 Minha mãe concordou com a professora alien. Meu pai relutou um pouco, fui para a escola em um dia das férias e fiz uma prova. Passei e em uma tarde eu tinha ido de uma sala de crianças para uma de pré-adolescentes. Era desesperador a ideia de crescer, ou de estar em uma sala com gente grande. Eles eram incrivelmente gigantes na minha cabeça. Lembro de ir direto para minha cadeira e desenhar uma versão minha pequena em meio a uma terra de gigantes que nem em João e um Pé de feijão.

 Aparentemente crescer era se tornar algo super estranho. Apenas alguns anos de diferença e lá estavam eles falando de assuntos diferentes, me ignorando, sendo maiores, querendo ser adultos. Ser adulto era chato, por que eles queriam ser isso? 

 A professora entrou na sala e começou a escrever no quadro. Até aquele momento eu estava acostumado com a professora escrevendo lentamente e no máximo um trecho. Comecei a escrever e desenhar ao lado, quando olhei para frente a professora estava apagando o quadro. Ela estava apagando o quadro e começando a escrever uma continuação! E eu não tinha a acompanhado. Poxa, no meu mundo não existiam continuações. Tinha perdido aquilo, nunca mais ia conseguir recuperar. Estava sozinho na terra dos gigantes. E então comecei a chorar.

 Lembro de chorar muito, e de continuar chorando. E do choro no começo ter como razão não conseguir acompanhar a professora, e depois essa razão ser todas as pessoas me olhando enquanto eu chorava. Depois daquele dia eu passei a desenhar mais rápido, e escrever velozmente. Não ia parar de fazer arte. 

 A verdade é que desde os meus quatro anos eu quero ser um escritor absoluto. Para mim um escritor absoluto é alguém que consegue escrever de tudo e com tudo, um contador de histórias. Quadrinhos, artigos, terror, comédia... Tudo! A escola foi incrivelmente entediante para mim e opressora nesse ponto. Era difícil entenderem que arte não era só uma fase, era todo o meu jogo. 

 Alguns anos depois a professora de inglês nos perguntou o que queríamos ser quando crescêssemos. A sala toda começou a falar ao mesmo tempo, a professora pediu silêncio e foi apontando e pedindo para que cada um de nós falássemos. 


- Advogado! 
- Médica! 
- Engenheira! 
- Advogada! 
- Quadrinista! 

 A professora parou. 

- Victor?
- Oi, professora.
- O que você disse que quer ser? 
- Quadrinista, professora.
- O que é isso?
- Um autor de quadrinhos, professora. Gibis. 

Ela franziu o cenho com desprezo. 

- Isso não é uma profissão de verdade, Victor. 
- É sim, professora.
- Não é - disse ela - no máximo é a extensão de outra profissão.
- É sim! Existem até lojas só de quadrinhos.
- Isso são bancas, Victor.
- Não! São Comic store! 

Ela se virou.

- Isso não existe,  Victor.

 Consegue imaginar? Ela disse que o que eu queria fazer, o que eu era, o que eu consumia, ela disse que tudo isso não existia. Que se existisse não era uma profissão de verdade. Naquele dia eu fui para casa chorando. Peguei dois reais e fui até uma lan house. Imprimi o nome e biografia de alguns autores de quadrinho (Mark Millar, Stan Lee, Neil Gaiman...) e uma lista das lojas de quadrinhos localizadas na América latina (eram várias). No outro dia cheguei na sala e andei até a mesa dela, confiante. Espalhei os papéis na mesa.

- Esses são quadrinistas - disse - eles existem, e são bem famosos. São sim. E essas são as lojas de quadrinhos da América latina, eu não consegui imprimir todos os nomes porque eram muitas. 

 Lembro dela ficar calada e sussurrar algumas desculpas. Até hoje acho que ela não acreditou naquilo, mas no dia eu me senti triunfante. Existe, sabe. Essa gente, a gente da arte, a gente dos quadrinhos. Os contadores de histórias. Mas achei que aquilo ia mudar, que esse tipo de preconceito ia sumir quando eu crescesse. Então no ensino médio onde toda a minha sala estava ansiosa para o ENEM os professores começaram a perguntar sobre os cursos.

- Eu quero fazer direito!
- Eu quero fazer medicina!
- Engenharia civil! 
- Engenharia florestal! 
- Eu quero ser quadrinista. 

Silêncio.

- O quê, Victor? - perguntou o professor.
- Quero escrever quadrinhos, gibis. 

 E de novo o olhar de desprezo. Não lembro de gostar de nenhum dos meus anos de escola, mas fico feliz por ter mudado a visão de algumas pessoas sobre arte. Agradeço a quem ouviu minhas histórias, e quem quer continuar ouvindo e lendo. Crescer me doeu porque não acreditaram que eu existia, e às vezes ainda não acreditam. O maior poder de um artista é se levantar depois de cair, e conseguir contar uma boa história sobre isso. Crescer me doeu, mas rendeu uma cicatriz bem bonita.

 Ei, prazer, existo, sabe. Sei que vocês me falaram por muito tempo que não existo, mas tô aqui. Ei, sei que você tá ai. Sei que você fala mal de artistas e de quem quer seguir a profissão, mas no final da noite assiste uma novela. Prazer, como vai? Há, isso, vocês estão acreditando em mim. Fiquem por perto. Acreditem, vai ser extraordinário. 

 Ei, quer ouvir uma história? 

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