Hoje eu fui soltar pipa. Foi uma experiência bem interessante, nunca tinha feito isso quando era criança e me rendi a oportunidade. A verdade é que passei a maior parte do tempo fotografando, mas coisas aconteceram, e decidi as contar aqui. Fui soltar pipa com a Isna (uma morena linda e maravilhosa) e seu irmão, Igor (um guri que achei incrível), os três nunca tinham feito isso antes e achei a ideia no minimo audaciosa.
Chegando no Horto nos sentamos e tentamos arquitetar aquela tarefa. Nenhum de nós três sabia como fazer aquilo, mas tentei uma abordagem cientifica. Sabe, quando não entendo as coisas tento usar um conhecimento prévio de ciência. Estabilizador, vento contrário, resistência, gravidade, estado de inércia e ponto de equilíbrio. Começamos a fazer tentativas. Primeiro amarramos a linha errado, depois repetimos o erro. Então um grupo de garotos se aproximaram da gente, deveriam ter entre cinco e nove anos.
- Não sabe soltar pipa, tia?
Isna sorriu.
- Eu não tenho ideia para onde isso vai.
- Posso fazer o peitoral para a senhora. E subir.
- Eu posso tentar subir ela?
O guri riu para Isna e começou a transformar a pipa em algo diferente. Amarrou aquilo com uma habilidade profissional e treinada. Eu não sabia muito sobre como preparar uma pipa, mas sabia que ela tinha surgido na China e que tinha sido por volta de 1200 anos antes daquele cara bem importante morrer. Os garotos que comecei a chamar de garotos perdidos (Peter Pan, vocês entenderam) tinham todo um vocabulário em relação aquilo. Aprendi o que era descair, peitoral, solar, essas coisas de pepeta, sabe. Nisso a Isna decidiu que ia subir a pipa no ar. Ela segurou a linha e correu. A pipa resistiu contra o ar, levantou e foi de encontro ao chão. Isso se repetiu algumas vezes.
- Eu não consigo manter a pipa no ar - disse Isna - poxa.
O guri que parecia ser o líder do bando sorriu.
- Deve ser difícil, dona - disse - já que a senhora é mulher.
Poxa, aquilo me destruiu. Estava tudo tão bom, sabe? E ele era tão novo! Poxa, eu podia muito bem explicar para ele que tinha um contexto histórico e social para ele dizer aquilo. Podia explicar que mulheres poderiam muito bem empinar uma pipa, e tão bem quanto ele ou até melhor. Podia falar que as mulheres não tinham tido tantas oportunidades quanto a gente. Podia falar para ele sobre Marie Curie ou sobre a Malala. Poxa, ele era tão novo! E já tinha preconceito, aquilo me deixou um pouco triste. E foi só uma frase, mas dava de entender, sabe. Me preocupo com essas coisas. Nós falamos uma coisa ou duas, mas não foi o bastante, entende?
Fui criado por mulheres fortes e sempre me preocupei com representatividade feminina. Lia sobre o teste de Bechdel e pensava que queria fazer algo justo. Meu primeiro livro tem como protagonista uma mulher que resiste a tudo. E enquanto escrevia eu tinha várias preocupações:
Ela é uma boa representação feminina?
Ela é uma mulher verdadeira?
Os pensamentos dela fazem jus ou é só a impressão de um homem sobre o que ela pensa?
Ela teria essas preocupações?
Como ela se sente em relação a isso?
Constantemente conversava com a minha namorada e amigas sobre o livro e conflitos, queria algo puro, e sinceramente, o livro está em processo de revisão e ainda corrijo coisas. E ali estava, na minha frente, um guri de oito ou dez anos falando que deve ser mais difícil empinar uma pipa quando se é mulher. Sinceramente, guri, me desculpa ter ficado calado.
Não, não é mais difícil para ela soltar uma pipa só porque ela é mulher. Ela, assim como eu, nunca tinha feito isso antes, e se eu fizesse, seria pior ainda. E não, nenhuma ação vai ser mais difícil de ser executada só porque ela é mulher. O que vai ser mais difícil é a vida, sabe. Porque existem pessoas preconceituosas por ai. Por toda a história as mulheres foram colocadas por nós como algo inferior, e isso, atualmente, mesmo que esteja se revertendo ainda existe em um subconsciente social. O que vai ser mais difícil para ela vão ser os olhares, o desprezo. Poxa, guri, você poderia muito bem pensar nisso. Ela é uma pessoa, sabe? Mas tudo bem, eu te perdoo. Desculpa não ter falado nada. Muita gente fica em silêncio, hoje eu fiquei, e acho que errei. Na próxima eu falo, tá bom?
Mas é sério, soltar pipa é uma coisa complicada.
Isna e sua pipa. |
P.s: A Thá leu o texto e falou uma coisa interessante. Que faz parte do preconceito "homem só escuta quando homem fala". Por isso achei mais legal ainda a Isna ter falado algumas coisas.
Caiu bem, guri. Desconstrução é um processo e, confesso, é bom te ver se desconstruindo sempre. Acho isso maravilhoso, sabe. Isso permeia e possibilita nossa relação. Te adoro! Adorei a Isna e sua pipa!
ResponderExcluirIncrível! Sempre fico morrrendo de amores pelos teus textos e agora tenho um carinho especial por esse. Da próxima gaste um pouco mais do teu tempo explicando pro garoto que não é mais difícil por ela ser ela, e sim por ela não ter brincado com o brinquedo dele.
ResponderExcluir