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Cierra.


 Eu conheci Cierra no meu segundo dia na Bolívia. Tínhamos ido gravar um documentário e estávamos a procura do hotel mais barato o possível. No fim do primeiro dia encontramos uma hospedaria que cobrava quarenta reais a diária, com quartos de solteiro simples, cama de casal; um guarda-roupa modesto, TV de tubo e um ventilador. Meu amigo disse que era o bastante para sobreviver. Eu fui o único a ficar no segundo andar, e foi por isso que conheci Cierra. 

 Cierra dormia no quarto ao lado do meu, mas ela gostava de ficar sentada no corredor. Era da Argentina, porém adorava francês e o poeta favorito era um brasileiro, Augusto dos Anjos. Eu tinha dezesseis e Cierra vinte e sete. Ela veio falar comigo ao me ver tentar fotografar a cidade a partir da sacada. 

- Você é fotografo. 

Sorri.

- Oi, to começando, sim. Sou sim. 

- Me tira uma foto, 

 Cierra não falava bem português, mas todos os dias me pedia uma foto. Era uma mulher linda, mais velha e com o rosto marcado. Tinha sardas e os cabelos cacheados, os olhos fundos e a boca carnuda. Os cachos iam sob o ombro, e ela sempre os deixava livres. Ela tinha as crises dela e eu as minhas. Quando eu tremia durante crises de pânico ela segurava meu rosto e falava:

- Vai ficar tudo bem, petit prince. 

 E às vezes logo em seguida ela se encolhia no canto, triste. Nós nunca falamos da diferença de idade, eu só gostava de ver ela. Só achávamos engraçado a ideia dela ter existido em um tempo onde eu não existia. O que tivemos foi só uma semana e Cierra para mim era uma mulher gigante. Ela era grande em espirito, sorrindo, tinha ido para a Bolívia para apresentar um quadro. Cierra era real. Tinha seus momentos de tristeza, grosseria e tinha seus momentos de solidão. Às vezes se sentia ali, mas ao mesmo tempo longe de tudo. Cierra que falou para mim que não gostava de fotos, mas todo dia me pedia uma (depois ela apagou todas). 

 Por uma semana me senti incluído em algo maior, imerso e fora de mim, um paradoxo. Cierra gostava de ficar embrulhada nos lençóis e encarando a parede. É porque é branca, pensava eu, tem tudo e ao mesmo tempo nada. Cierra quando ficava por cima só se via os cachos contra a luz, e era a visão mais linda que se podia ter.

 Cierra foi embora, mas eu fui antes. 

 Não tenho nenhuma foto de Cierra. Mas ela me lembra um desenho, Sorrow, do Van Gogh. Quando vejo esse desenho diretamente o ligo a ela. No quadro nós podemos ver uma mulher mais velha, real, debruçada sobre si mesmo. Se afogando, existindo.

 Cierra nunca existiu, pelo menos não da forma que nós esperamos. Porém acredito que não temos parâmetros tão bons para avaliar a realidade. Cierra me apareceu em um sonho lúcido quando estava na moto com o meu pai. Me chamando de petit prince. Por um segundo ela pareceu um mosaico de todas as mulheres que amei, mas ela era única. Entendi quando escrevi isso. Cierra era tão clichê quanto qualquer estória de romance, mas ao mesmo tempo lá estava ela. Sendo Cierra, sendo única. 





Comentários

  1. Uau. Tô liberada pra encontar Cierra em mim? Tô sim, né. Porque encontrei sim...

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